Manifestamente, eu acho que o tio e o primo de José Sócrates não se recomendam. Mas não posso julgá-lo por isso: a família não se escolhe nem se controla. Eu não vou julgar José Sócrates porque o tio meteu um empenho para que ele recebesse o sr. Smith, ao serviço do Freeport, ou porque o primo depois tomou a iniciativa de cobrar essa audiência ao Freeport. E também não vou esquecer o enredo político em que toda esta história nasce. Comecemos por aí.
O caso Freeport nasce, em 2005, como uma claríssima manobra de desespero eleitoral do pior PSD que já existiu. Nasce de uma promíscua trama tecida entre um inspector da PJ, jornalistas a soldo e homens de mão do poder de então. E renasce agora em ano de eleições e, queira-se ou não, como a única arma que o PSD tem para tentar evitar a anunciada e inevitável vitória de Sócrates e do PS em Outubro. Não é argumento decisivo nem de substância, mas é um facto — e um facto a ter em conta, enquanto se avança com pinças nesta história.
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O segundo facto digno de meditação é que, derrubado Sócrates, o país fica entregue à deliquescência. É possível que, como escreveu José Miguel Júdice, partindo de outro contexto, Portugal se torne ingovernável e que deixe até de reunir condições para existir, enquanto país independente — essa é, aliás, uma hipótese de trabalho que há muito considero como coisa possível e mais verosímil do que se imagina. Eu penso que Portugal não vale muito como nação e como povo — aquilo que nos separa da inviabilidade não é tanto como, por inércia, nos habituámos a pensar.
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O terceiro facto constringente é que o caso Freeport veio piorar ainda mais este cenário cinzento em que vivemos, estes dias de eterna chuva que duram já desde o ano passado, este terror de ouvir as notícias da manhã e saber que fechou mais uma empresa, que mais umas centenas ou milhares de trabalhadores e famílias foram lançados na miséria, esta raiva de descobrir que mais uma gentil alma, cavalheiro da finança e comendador da nação, não passava afinal de um vulgar bandido de salão, um salteador de ilusões. Porque José Sócrates não tem sido um primeiro-ministro perfeito — longe disso! — mas é o melhor ou o menos mau que podemos arranjar. O seu forte foi ter a vontade e a coragem de mudar o que gritantemente estava mal. O seu fraco foi ter tomado por aliados os bandidos de salão. Não lhe cobro os professores: cobro-lhe os contentores. Não lhe cobro os hospitais sem doentes e as escolas sem alunos encerradas: cobro-lhe o TGV sem passageiros e as auto-estradas sem utentes. Cobro-lhe a oportunidade perdida de ensinar à clientela do regime que tem de aprender a viver sem os negócios e os favores do Estado. Porque essa é razão primeira para a inviabilidade de Portugal. Mas é facto que, como está à vista de todos, não há, presentemente, substituto para governar Portugal e, assim sendo, a execução em lume brando de José Sócrates é a pior perspectiva possível para 2009.
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E mais uma coisa me poderia deixar constrangido, não sei se por deslocado reflexo patriótico: que um organismo policial inglês, chamado Serious Fraud Office, funcionando na dependência do PM britânico, se ache autorizado a mandar uma carta rogatória à polícia portuguesa onde declara o nosso PM suspeito de “ter solicitado, recebido ou facilitado pagamentos” para licenciar o Freeport, com base num depoimento de um vulgar cidadão inglês, um tal sr. Smith — que, aliás, parece que, afinal, o desmente. Alguém imagina a nossa PJ a mandar uma carta rogatória à Scotland Yard dizendo que, com base num depoimento do sr. Silva, declara Tony Blair, por exemplo, suspeito de ter sido corrompido para apoiar a invasão do Iraque?
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Estas são as questões essenciais a que José Sócrates tem de responder e que, salvo melhor opinião, ainda não vi que tenha feito satisfatoriamente. O resto — dizer que está à disposição da justiça, que espera que ela seja rápida e faça o seu caminho — tudo isso são trivialidades. Mas nas quais, culpado ou inocente, ele se irá afundando, passo a passo, enquanto para todos nós não se tornarem claras as razões pelas quais o Freeport de Alcochete foi aprovado e naquelas circunstâncias. Ninguém lhe pode exigir, ao contrário do que alguns histéricos jornalistas acham, que inverta o ónus da prova criminal. Mas o ónus de provar a boa-fé política com que agiu, essa, cabe-lhe por inteiro. E disso depende o nosso futuro próximo